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A ARTE DE SER AVÓ

Raquel de Queiroz

...Quarenta anos, quarenta e oito. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações - todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto - mas acredita.

Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.

Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é "devolvido". E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis...

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Entrevista com Edgar Morin: O desafio da complexidade e da transdisciplinaridade.

Se há um intelectual francês para quem a expressão ‘mestre’ ainda tem um sentido, este é Edgar Morin. Um mestre do pensamento respeitado e estudado, que há mais de meio século afronta com as armas da reflexão a complexidade do mundo e as suas contradições. Aos 86 anos, o sociólogo que se aproximou da filosofia é hoje mais do que nunca o centro do debate intelectual: os seus livros são traduzidos no mundo inteiro e as suas teses são discutidas atenciosamente em congressos concorridíssimos. O último se realizou, há alguns dias, em Paris, onde, durante dois dias, Morin se confrontou publicamente com especialistas em várias disciplinas. A reportagem e a entrevista são do jornal La Repubblica, 25-04-2008.

Não por acaso, portanto, que a editora Seuil decidiu republicar, integralmente, a obra O Método, isto é, os seis volumes do estudioso francês publicados entre 1997 e 2004, afrontando, graças ao diálogo contínuo entre ciências humanas e ciências naturais, as muitas formas da complexidade. Uma reflexão que, partindo do “conhecimento da natureza”, se alarga para a “natureza do conhecimento”, investindo depois no mundo das idéias, o território da antropologia e o continente da ética. “Como todos os pioneiros, também eu, no início, fui incompreendido. Hoje, no entanto, a importância do conceito de complexidade é reconhecido por todos”, recorda Morin, a cujo pensamento voluntariamente aberto a revista Communications acaba de dedicar um rico número monográfico.

“Quando comecei a escrever o primeiro volume de O Método, não era, certamente, um profeta. Eu buscava somente compreender a realidade que estava na minha frente, confrotando-me com as idéias que começavam a circular em certos ambientes de pesquisa. Em seguida, algumas das minhas intuições foram recebidas pelo mundo da cultura, outras, pelo contrário, suscitaram fortes resistências”.

O Método é um trabalho que foi se fazendo e que foi sendo reorganizado no decorrer do tempo...

Escrever para mim não é simplesmente redigir um texto a partir de um pensamento já cristalizado. Pelo contrário, o momento da escritura é aquele no qual as reflexões se formam e se transformam, para que novas idéias modifiquem continuamente a economia do trabalho já feito. Sem esquecer as leituras de alguns amigos que, com as suas críticas, me mostraram novos horizontes de pesquisa, impelindo-me a retomar o trabalho. É um modo de trabalhar difícil, mas apaixonante, que transforma continuamente o meu pensamento. Um pensamento, pois, que nunca é inamovível nem definido uma vez por todas. Como dizia Nietzsche, o método chega somente no fim.

Por que o conceito de complexidade lhe pareceu decisivo?

Os problemas importantes são sempre complexos e devem ser afrontados globalmente. Se quero compreender a personalidade de um indivíduo, não posso reduzi-la a poucos traços esquemáticos. Devo necessariamente ter em conta muitas nuances, às vezes contraditórias. O mesmo vale para a situação do planeta. Para compreendê-lo é preciso ter presente muitos parâmetros. Enfim, a realidade é complexa e cheia de contradições que são um verdadeiro desafio para o conhecimento. Para afrontar tal complexidade, não basta simplesmente justapor fragmentos de saberes diversos. É preciso encontrar o modo de integrá-los no interior de uma nova prospectiva.

É o que o senhor fez no Método?

Realmente, busquei elaborar alguns princípios de tal modo que fosse possível colocar em relação aqueles conhecimentos que os instrumentos tradicionais do conhecimento não conseguem coligar. Por isso utilizei o ensinamento daqueles filósofos que não tiveram medo de afrontar as contradições, desde Heráclito até Marx. Sem esquecer Pascal, para quem o homem era o ser mais miserável e grotesco, mas também o mais nobre.

O terceiro volume do Método é dedicado ao “conhecimento do conhecimento”. Por quê?

Este é, certamente, o coração do problema, já que devemos conhecer os mecanismos do conhecimento, se queremos compreender os nossos erros. Se as minhas idéias encontraram o favor de muitas pessoas em diferentes âmbitos – da ciência à literatura, da filosofia à pedagogia – é porque estas eram profundamente insatisfeitas de uma cultura dominada pelo pensamento binário, feito de oposições maniqueístas que removem toda e qualquer contradição. No meu trabalho encontraram uma primeria resposta às dúvidas que tinham. Eu, no entanto, somente revelei intuições que, ainda que não formuladas, eram provavelmente já estavam presentes em muitos estudiosos. Existe uma aspiração difusa de um outro modo de compreender o conhecimento. Por isso, as minhas reflexões puderam se difundir em muitos países, como a Itália, onde o meu trabalho é mais seguido que na própria França. Isso, naturalmente, é motivo de uma grande satisfação, ainda que muito ainda precisa ser feito.

Em que direção?

É preciso se ocupar do ensino. A reforma do conhecimento e do pensamento somente poderá se concretizar através de uma reforma do ensino, uma problemática a que tenho dedicado os livros A cabeça bem-feita (Bertrand Brasil, 2001)e Os sete saberes necessários. A educação do futuro (Cortez, 12a. edição, 2007). O nosso sistema de ensino separa as disciplinas e despedaça a realidade, tornando impossível a compreensão do mundo e impedindo perceber os problemas fundamentais que sempre são globais. O excesso de especialização se tornou um problema. Pessoas muito competentes no seu setor, não sabem como reagir quando qualquer outra problemática perpassa o seu âmbito específico. Teriam que ser capazes de afrontar globalmente os problemas, mas não são capazes.

É preciso uma ótica interdisciplinar?

Sim, evidentemente, mas a interdisciplinaridade avança muito lentamente. No mundo da pesquisa francesa os barões das disciplinas não são nem um pouco sensíveis a tal perspectiva. Há, no entanto, um movimento em curso, que eu busco encorajar. A interdisciplinaridade é positiva porque permite que as pessoas que trabalham em campos diferentes, dialoguem, mas seria necessário fazer um passo ulterior na direção da transdisciplinaridade, a única capaz de construir um pensamento global capaz de articular os diferentes saberes. No fundo, existe já uma ciência que se move neste sentido e que pode servir de modelo.

Qual é?

A ecologia, que se apóia na idéia de ecossistema. Ou seja, uma organização complexa, fundada ao mesmo tempo no conflito e na cooperação, que nasce da eco-organização e da implicação recíproca dos diferentes componentes do sistema. Fazendo interagir muitos parâmetros diferentes, a ecologia é um exemplo muito sutil, ainda que ela seja uma ciência com uma dimensão aleatória, dado que ainda não somos capazes de responder a todas as grandes interrogações que ela levanta. Isso vale mais ainda quando as chamadas ciências exatas são sempre mais constrangidas a integrar a dimensão da dúvida e da incerteza. Nenhuma ciência pode se arrogar exclusivamente certezas. Basta pensar nas dificuldades da economia ante o marasmo dos mercados. Enfim, é preciso nunca eliminar a dúvida.

A ecologia é um modelo também para o sistema da cultura? É por isso que o senhor tem falado de uma ecologia das idéias?

É um dos modelos, dado que também no âmbito cultural agem contemporaneamente os princípios de conflito e de cooperação. Partindo deste ponto de vista, é possível pensar em termos diferentes também a relação entre autonomia e independência. Na natureza não se pode ser independente a não ser dependendo do próprio ambiente. O que vale para o ambiente biológico, vale também para o ambiente social, urbano, cultural, religioso. Compreender a interdependência dos sistemas culturais e das idéias é hoje mais do que nunca necessário. Isso contribuirá a mudar o nosso modo de pensar, dando-nos um instrumento a mais para fugir do abismo para o qual o planeta parece estar destinado.

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